O estado do Rio de Janeiro tem um ecossistema riquíssimo, com faunas e floras de variedade ímpar, divididas entre montanhas, lagoas, rios, mares, parques ambientais e a belíssima Mata Atlântica. A questão é que há décadas a natureza fluminense sofre com a ação do homem, principalmente nas regiões do Grande Rio, Baixada Fluminense e capital. No município do Rio, a situação degradante da Baía de Guanabara e dos sistemas lagunares da Zona Oeste não é novidade para ninguém. Será que há solução? Para falarmos sobre esse assunto nada melhor do que dar voz a uma das maiores autoridades em meio ambiente do Brasil. Nós conversamos com o biólogo Mário Moscatelli, mestre em Ecologia e Especialista em Gestão e Recuperação de Ecossistemas Costeiros.
Jornal O Povo – No fim do ano passado, o Governo do Estado anunciou que instalararia ecobarreiras para retirar lixo flutuante nas lagoas da Barra e Jacarepaguá, com investimentos de R$ 2,7 milhões por ano. A iniciativa não é inédita e parece não ser o suficiente para resolver o problema. Em sua opinião quais outras ações precisam ser feitas para recuperar esse sistema lagunar?
Mario Moscatelli – Temos de ter claro que no Rio de Janeiro estamos em guerra contra o ambiente. Numa guerra ou numa doença grave, a estratégia, em ambos os casos, precisa ter um protocolo. O protocolo que eu pensei já há vinte anos, sim, pois já são vinte anos que tenho solicitado às mais diferentes autoridades a colocação dessas ecobarreiras nos principais rios que transportam resíduos para o sistema lagunar, vinte anos! Finalmente na atual gestão, o Governo do Estado instalou essas novas três ecobarreiras. Veja como demoram as coisas nesse lugar! Voltando ao protocolo, precisamos, ao mesmo tempo, evitar que o quadro de assoreamento das lagoas se agrave, que é uma das consequências da ocupação urbana desordenada, bem como atacar as causas. E aí é que o “bicho pega”. O que eu tenho indicado, repito, há vinte anos:
1- Atacar as causas – Saneamento Básico universalizado e ordenamento do uso do solo.
2- Atacar as consequências – Enquanto atacam-se as causas, as consequências precisam ser combatidas para não perder a guerra ou levar o doente ao óbito, isto é, neutralizar o aporte de lixo e esgoto nas lagoas e dragar as lagoas.
Destaco que essas ações, no que tange as consequências, constam daquele documento que não foi materializado por parte das autoridades brasileiras relacionado com os legados ambientais olímpicos no sistema lagunar de Jacarepaguá. Não fizeram porque não quiseram.
JP – No mês passado, uma atuação do MPF e do GAEMA/MPRJ conseguiu que fosse incluído na concessão de serviço de esgoto do Estado a obrigação de investimento de R$250 milhões em ações de despoluição do sistema lagunar da Barra da Tijuca e Jacarepaguá. O senhor acredita no resultado desta ação?
MM – Veja bem, nos jogos Pan-Americanos disseram que os tais jogos deixariam legados ambientais no sistema lagunar. Resultado praticamente nenhum. Depois vieram os jogos olímpicos. Disseram mais uma vez sobre os legados ambientais no sistema lagunar. Resultado praticamente nenhum. Destaco que a não ser pela minha cobrança enquanto técnico e morador, salvo engano, não vi nenhuma mobilização da sociedade sobre o assunto, parecendo que o sistema lagunar era só meu! Isso, é claro, sinaliza para os responsáveis públicos que o assunto não desperta grande interesse da sociedade, o que é um baita incentivo para não fazer coisa alguma.
Lembro de matéria no jornal o globo em 2017, onde o TCU (Tribunal de Contas da União) mandava que os responsáveis terminassem as obras referentes ao legado ambiental não realizado em 2016. Desde então desconheço qualquer ação prática nesse sentido. Agora temos essa notícia do MPF E MPRJ. Torço que dê certo, apesar do recente histórico de descompromisso por parte das autoridades ser desanimador. O tema ambiental não é um tema que desperte interesse da sociedade e consecutivamente dos administradores públicos que vivem do voto dessa sociedade desinteressada. Portanto, junta a fome com a vontade de comer o ambiente, vivemos a tempestade perfeita em termos de degradação ambiental.
JP – O programa de concessão da Cedae prevê R$ 2,6 bilhões para a despoluição da Baía de Guanabara. Você acredita que é possível despoluir a baía?
MM – Claro que sim do ponto de vista técnico, pois nesse lugar nunca faltou dinheiro, não falta gente preparada tecnicamente, mas temos um probleminha, de natureza cultural. Enquanto quem administra essa dinheirama, continuar se sentido fora do alcance da lei, não adianta entupir a Baía de Guanabara de dinheiro, pois o seu entorno continuará um depósito de obras de saneamento inacabadas, nunca usadas e se deteriorando. Enquanto a impunidade for a certeza dos que administram essas verbas bilionárias, não há como reverter a degradação da Baía de Guanabara. Isso sem falar nos municípios que não tomam conta da ordenação do uso do solo, pois seus prefeitos também se sentem muito à vontade para deixar a malhar urbana crescer de qualquer maneira, transformando as bacias hidrográficas em valões de lixo e esgoto.
Portanto o problema não é técnico, é muito mais embaixo e complicado de resolver, pois é cultural, a cultura do usar até acabar, principalmente quando é dinheiro público. Vá ver a estação de tratamento natimorta de São Gonçalo! Vá ver a estação megalomaníaca da Alegria, subutilizada com seus equipamentos se deteriorando no tempo! “Não pega nada” para essa turma que tem administrado as obras de saneamento no entorno da baía e daí o resultado ambiental pífio obtido ao custo de bilhões de reais investidos. Mais uma vergonha nacional que eu particularmente já denunciei inúmeras vezes desde 1999! Veja o documentário Toxic Guanabara capítulo 1, onde eu explico bem e dou exemplos dessa que eu chamo a indústria da degradação.
JP – Segundo a ONG Trata Brasil, somente 42,9% do esgoto da cidade do Rio de Janeiro é tratado. Como melhorar esse cenário?
MM – Claro que sim! Gestão e investimento por um lado e ordenação do uso do solo pelo outro. Tecnicamente não vejo problema. No entanto, como já dito, do ponto de vista cultural, não vejo ainda solução pois vivemos a tempestade perfeita, onde o carioca aceita tudo, pagar e receber um produto, quando recebe, de péssima qualidade e ainda fazer graça sobre o assunto. Veja o tema da Geosmina. Se fosse um lugar sério, que no tema ambiental não o é, muita gente estaria sendo presa. Mas na prática o que acontece com essa turma? Nada e tudo continua na mesma.
JP – Se não for feito nada diferente dos últimos 20 anos, como você vê o ecossistema do estado do Rio de Janeiro daqui a 20 anos?
MM – Lembra daquele primeiro filme do Blade Runner? Algo bem semelhante, mas de forma ainda mais abrangente, com a dimensão das áreas degradadas no Rio de Janeiro tomando uma área ainda maior do que a atual. Veja que isso é apenas uma tendência de nivelar a qualidade ambiental da cidade e do estado por baixo. Crescimento urbano desordenado tomando porções cada vez maiores como uma metástase no tecido urbano-ambiental das cidades.
A consolidação irreversível das bacias hidrográficas como parte do sistema de esgotamento sanitário, supressão dos ecossistemas, principalmente dos costeiros, com perda de biodiversidade e intensificação de espécies animais e vegetais consideradas pragas, muitas das quais (animais) potentes vetores de doenças epidêmicas nas populações humanas, qualidade da água fornecida cada vez mais comprometida pelo despejo de esgoto doméstico e industrial na água, utilizada para o abastecimento com o surgimento de doenças de origem acumulativa por conta da água contaminada, sucessão de tragédias em áreas de risco, tanto em encostas como nas baixadas, geradas pelo desabamento e inundação cada vez mais frequentes em consequência do agravamento das mudanças climáticas e esse processo se retroalimentando, sempre piorando com o passar do tempo.
Parece filme de ficção, mas se você parar para pensar o que já vem acontecendo agora, esse enredo de filme, já está acontecendo e parece que a maioria ainda não percebeu das suas responsabilidades. Enquanto continuarmos inertes, enquanto a passividade diante da impunidade continuar, enquanto a resiliência patológica da sociedade for a regra, os delinquentes ambientais que se beneficiam de toda a degradação que não é fortuita e tão pouco gratuita, continuarão degradando sem parar. Destaco que sociopatas não sentem empatia, mas apenas tem por objetivo alcançar seus objetivos e apenas isso, custe o que custar. Infelizmente, consigo identificar inúmeros sociopatas no comando desse lugar, portanto o que vem por aí, se não modificarmos nosso comportamento omisso diante do tema ambiental, é muito, mais muito pior do que já vimos até o momento. Questão de decisão se vamos deixar esses sociopatas continuarem destruindo.